sexta-feira, abril 22

Espelho, espelho meu...


Existe alguém mais plastificada do que eu???

Dos tempos de mocinha, Stella carrega uma tatuagem com os dizeres Peace&Love e a saudade de ser comparada à atriz francesa Brigitte Bardot, símbolo sexual dos anos 60. Sonhadora e romântica, formou-se professora, casou-se aos 22, teve 3 filhos, mas conseguiu se livrar do mau gênio do marido, com quem viveu por 30 anos. Agora, aposentada e bem de vida, está às voltas com outro algoz.
- O que você fez na cara?
- Não gostou do resultado da plástica que fiz nas pálpebras?
-Ficou muito esticada, mudou a expressão e, de quebra, você ganhou uma cicatriz!
- Tem razão. Vou fazer um retoque. E o que achou dos lábios mais carnudos? É uma técnica chamada bardotização, inspirada na minha musa.
- Ficou beiçuda demais. Você entrou num devaneio de se parecer com a Angelina Jolie e virou uma carranca.
-Pelo menos o botox funcionou!
-Como funcionou? Sua cara está lisa, inchada, inexpressiva. Quando se espanta, ganha ares de bruxa com as sobrancelhas arqueadas. E o que aconteceu com suas bochechas?
- Injetei silicone e fabriquei novas maçãs para o rosto.
- Parece que levou vários tapas na cara ou chorou a noite toda!
-E o meu corpo? Fiz uma lipo.
-Está cheio de celulite, gordura localizada. Só uma lipo não resolve. Trate de fazer uma dieta antes de cair na faca.
- Faz anos que luto pra me manter jovem e bela e você não reconhece meus esforços. Sou uma mulher de quase 60 anos. Você queria o quê? Não tenho como recuperar o frescor da juventude.
- Isso é desculpa das preguiçosas e frustradas. Há um arsenal de produtos e serviços para combater a velhice. É só usar na medida certa. Mas você sempre exagera…
- Chega! Não aguento mais os seus insultos!
- Eu é que estou farto de sua necessidade de aprovação.


 A briga foi mais uma dentre inúmeras que Stella trava diariamente. A qualquer hora, lá está ela novamente, cara a cara com o inimigo, perdendo-se no espelho à procura de si mesma.
“O espelho é a nova forma de submissão feminina”, afirma a historiadora Mary Del Priore. Segundo ela, “no decorrer deste século, a brasileira se despiu. O nu na tevê, nas revistas e nas praias incentivou o corpo a se desvelar em público. A solução foi cobri-lo de creme, colágeno e silicone. O corpo se tornou fonte inesgotável de ansiedade e frustração. Diferentemente de nossas avós, não nos preocupamos mais em salvar nossas almas, mas em salvar nossos corpos da rejeição social. Nosso tormento não é o fogo do inferno, mas a balança e o espelho. Nos curvamos não aos pais, irmãos, maridos ou chefes, mas à mídia. Não vemos mulheres liberadas se submeterem a regimes drásticos para caber no tamanho 38? Não as vemos se desfigurar com as sucessivas cirurgias plásticas, se negando a envelhecer com serenidade? Se as mulheres orientais ficam trancadas em haréns, as ocidentais têm outra prisão: a imagem.”


Um estudo mundial da Unilever apontou que 40% das mulheres não se sentem à vontade para se definirem como “bonitas”. Apenas 2% das mulheres se definiram assim. O peso está acima do normal para 47% das entrevistadas, mesmo que, tecnicamente, muitas delas não tenham sobrepeso. A afirmação “quando me sinto menos bonita, sinto-me pior em geral” teve 48% de concordância. Para 68%, a mídia divulga um padrão de beleza que as mulheres nunca poderão alcançar. A afirmação de que “mulheres bonitas têm maiores oportunidades na vida” obteve a concordância plena de 45% das entrevistadas. As mulheres brasileiras são as que mais consideraram a hipótese de cirurgia plástica, constituindo o índice mais alto entre todos os países.
Mas o feminino também se supera e nos surpreende. A diva do cinema com quem Stella se comparava nos tempos da juventude e que, por ironia, dá nome a uma técnica da cosmeatria para inflar os lábios, denuncia os testes cruéis e inúteis praticados em milhares de animais, mortos pelas injeções de botox. Segundo Bardot, os músculos dos pobres bichos são paralisados até a morte.
“É ainda mais escandaloso o fato de já haver métodos alternativos aos testes em animais e que deveriam ser impostos aos fabricantes (principalmente ao grupo francês Ipsen) desta toxina que provoca uma paralisia facial pelo único e fútil propósito de se ficar com a pele lisa. É uma desolação ver que certas pessoas prefiram ter uma cara sem expressão, com traços de estupidez crassa do que assumir as suas rugas, mas isso deixar-me-ia perfeitamente indiferente se esse capricho não implicasse a morte de animais sacrificados pela vaidade.”

 

Se antes as roupas nos aprisionavam, agora a ditadura da beleza nos prende na ilusão de máscaras e na justeza das próprias medidas. Se fomos capazes de rasgar espartilhos, queimar soutiens e libertar musas da escravidão da imagem, talvez seja hora de estilhaçar os espelhos.

* Rosana Jatobá – Advogada e Jornalista

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